quarta-feira, 23 de março de 2016

Negligenciando o básico?

Há uns dias atrás, no Congresso de Futebol organizado pela Bwizer, o professor José Soares deu uma excelente palestra onde o foco foi a sua especialidade: a vertente fisiológica do desporto. Acima de tudo, como pode a excelência nesse campo e os estudos que nele são feitos, dinamizar o futebol na prevenção de lesões e na optimização do rendimento desportivo.

O sentimento que existe no futebol atual pende muito para o lado tático e com toda a razão. O legado de Vitor Frade tem vindo a fomentar-se em virtude de vários sucessos, Mourinho à cabeça, um pouco por todo o lado. A Periodização Tática (http://pt.slideshare.net/PedMenCoach/periodizao-ttica-jos-guilherme-oliveira) diz-nos para treinamos como queremos jogar. A padronização de comportamentos de forma a condicionar as ações dos jogadores, para que as variáveis passíveis de orientação possam ser pendidas a nosso favor. Dentro de micro-ciclos semanais, encontramos espaço para treinar macro e micro-comportamentos, em grandes e pequenos espaços, com variações nos estímulos fisiológicos para que a preparação seja feita de forma variada e adequada. Uma das características que surge é a especificidade morfológica, onde a adequação das ações (físicas) para o jogar pretendido vem de arrasto com o estilo de jogo pretendido. Por outras palavras, um estilo de jogo onde a predominância advenha de transições rápidas, por exemplo, irá ser reproduzida, em treino, nessas mesmas condições. O jogador, pela adaptação a tais exigências irá, com tempo e treino, adaptar-se ao que lhe é exigido, como um todo. O mesmo pode ser dito de ações mais simples. Sabemos que um remate, por exemplo, exige uma força predominantemente fornecida pelos quadrícipes. Dado tempo e repetições suficientes, a adaptabilidade correta ao esforço irá acontecer. Ou não?

O futebol, um pouco à parte de outros desportos, tem vindo a mostrar alguma negligência pela vertente física do jogo, do atleta. Seja pelo facto de as criticas (bem feitas) ao exagero de um foco desreguladamente acentuado nas características condicionais em tempos passados que deixavam de lado fatores mais importantes, seja pela nova onda de educação que contrapôs essa mentalidade e, em boa verdade, deixa a milhas metodologias de décadas anteriores e se foca acima de tudo na vertente tática. De uma maneira ou de outra, se levadas muito a sério, podem ser extremos que não beneficiam a evolução neste campo e que continuam a não deixar haver um fundamental equilíbrio nas forças em questão.

Qualquer ação no jogo tem uma base "física", sejam um passe, um remate, uma simples deslocação. São manifestações anexadas a uma ideia sim, mas inerentemente físicas. Num pequeno aparte e parafraseando José Guilherme: "A técnica é a capacidade de um atleta de idealizar corretamente aquilo que quer fazer, manifestando-se depois essa idealização numa ação motora." No fundo, toda a técnica precisa de uma correta ação motora para ser bem realizada. Uma sem a outra não fazem sentido porque atuam juntas (cada uma no seu domínio) e em conformidade com a situação.

Mas divago. Agora, de volta ao tema em questão. Em qualquer movimento que fazemos, entram em ação músculos agonistas e antagonistas. Por outras palavras, sempre que solicitamos o esforço de um músculo (agonista), existe outro (antagonista) que equilibra a balança, para que o movimento seja completo e compensado. No caso do remate acima citado, existe uma solicitação (em extensão) dos quadrícípes, o que torna os isquiotíbiais os antagonistas desse mesmo movimento. O inverso se passa quando falamos de uma flexão do mesmo membro. Os protagonistas são os mesmos, mas com papéis diferentes.


E é aqui que o professor argumenta ser necessário um maior equilíbrio, falando de um défice que claramente existe comparativamente com outros desportos. Lesões traumáticas à parte (e às vezes nem isso dado que o cansaço através deste défice pode bem ser uma das razões para tal em alguns casos), no futebol ainda não existe uma preocupação suficiente para prevenir este tipo de acontecimentos. Podemos comparar esta situação com as ações de uma equipa em atacar prevenindo uma transição defensiva. Não interessa só atacar bem mas sim ter noção que depois disso temos de estar preparados para o momento que se segue, pensando o jogo (e o movimento) como um todo. Se atacamos considerando a hipótese de perdermos a bola e para isso dispomos os jogadores de acordo a terem sucesso numa eventual transição, porque não fazer o mesmo com as exigências musculares de cada atleta?

Vítor Frade costumava dizer que o músculo não é cego. É um órgão sensível, afetado por tudo o que o rodeia, até à mais pequena alteração "não-natural" dos seus companheiros. As alterações morfológicas desnecessárias provocadas pela exigência física fora do contexto de jogo (o treino de força tradicional) são prejudiciais e ditaram a ridicularização do mesmo. Mas José Soares traz bons pontos para a discussão e aborda o tema de um ângulo totalmente oposto, com uma argumentação refrescante. Fala em treinar (preparar o atleta para o esforço) para treinar para jogar, onde a força física tem de ser tida em conta no seu todo e não apenas pela sua manifestação "visível". A ver vamos para quando no futebol finalmente se enraizará uma maior consciência da preparação física.

2 comentários:

Luis Santos disse...

João, só não concordo com uma frase:

"A técnica é a capacidade de um atleta de idealizar corretamente aquilo que quer fazer, manifestando-se depois essa idealização numa ação motora."

Capacidade de idealizar corretamente é um misto de conhecimento de jogo, decisão e reacção. Não sei qual será o termo mais correcto, mas técnica não. Técnica defino como capacidade de executar corretamente uma idealização com recurso à coordenação de ações motoras.

Isto é, não é a técnica que se manifesta numa ação motora, são as ações motoras que (no seu conjunto) se manifestam num movimento técnico.

É a minha opinião, não tenho estudos na área para fundamentar isto, por isso tem a validade que tem...

João Ferreira disse...

Luís, a tua argumentação também faz todo o sentido e até vai na linha do que eu disse. É uma questão de semânticas num conceito complexo mas resumindo, o que para ti é "conhecimento de jogo, decisão e reacção" para mim é técnica. Esses 3 aspectos que referes, pela impossibilidade de serem dissociados, são indexados a um conceito que, assim, os alberga na totalidade.

Porque a técnica, na utilização corrente da palavra, é praticamente dissociada da fisiologia que lhe é inerente. Mas tal não faz sentido porque sem movimento não há "técnica". Daquilo que tu podes analisar separadamente existe a ação física e existe a intencionalidade, que é expressa depois em ação motora.

Para mim faz mais sentido esta linha de pensamento mas lá está, falamos de semânticas. E a semântica muitas vezes pode ser falaciosa.