terça-feira, 29 de julho de 2014

Defender... por defender

Com a pré-época já a decorrer em 95% das equipas profissionais, esta parece ser a altura ideal para começar a abordar o que se passa dentro das 4 linhas... mas longe das luzes dos jogos oficiais.

Aqui acreditamos no treino como base de sustentabilidade para tudo o que uma equipa mostra (e não mostra) no jogo, assim como tomar o jogo como bússola orientadora para o treino semanal. Uma relação simbiótica e inquebrável, que dentro das circunstâncias corretas pode permitir a uma equipa qualitativamente mediana alcançar resultados acima do esperado. Grande parte desse salto baseia-se em duas premissas fundamentais: na qualidade das ideias do Modelo de Jogo e na operacionalização das mesmas por parte do treinador. Quanto mais eficazes forem estes dois fatores, mais hipóteses existem para que os bons resultados apareçam. 

Foquemo-nos então nessas duas vertentes. Aquando do planeamento de qualquer exercício, duas questões surgem que necessariamente devem ser endereçadas:

- Qual é o comportamento que quero que os meus jogadores adquiram através da execução do exercício?

- Como vou condicionar o exercício de forma a que esse comportamento surja, de forma natural, múltiplas vezes?

Analisando a forma atual da equipa, há que perceber qual o momento do jogo ou situação específica que urge ser alvo de foco. Tal deve ser feito com a noção que a vertente tática tem necessariamente que surgir como regente superior. Contextualizando isso com os princípios do Modelo de Jogo da equipa, temos a resposta à primeira pergunta.

A segunda questão exige mais trabalho e maior conhecimento. Com o material existente à disposição (que muitas vezes é insuficiente), há que saber usar todas as variáveis existentes para nos aproximarmos o máximo possível do comportamento pretendido. Dimensões do campo, múltiplas balizas, número de jogadores, objetivos do exercício, tudo pode e deve ser moldado. Mas, acima de tudo, nunca esquecer que o jogo é um processo contínuo, com linhas orientadoras globais inerentes a qualquer equipa em qualquer parte do Mundo e que o feedback durante o treino deve corresponder aquilo que o exercício pede e não o contrário.

Um (mau) exemplo disso é o seguinte:

- Forma: 5x5.

- Dimensões: 15m x 15m.

- Objetivo: Manutenção da posse de bola. Após 10 passes a equipa em posse ganha 1 ponto. Para quem defende, o objetivo é recuperar a bola para trocarem funções. Jogo contínuo.

- Condicionantes: Obrigatoriedade de jogar a 2 toques.

Não vou sequer entrar na discussão da utilização da regra dos 2 toques porque apenas me quero focar na ausência de uma referência espacial orientadora. Este problema afeta principalmente quem defende. O objetivo, para quem ataca, é apenas manter a bola. Tudo bem, posso concordar com isso porque em vários momentos do jogo a posse não tem necessariamente de ser orientada para a baliza. Podemos estar a falar duma saída de zona de pressão, por exemplo. Mas e a defender? Sem qualquer referência que oriente o posicionamento de quem defende, o que o exercício acaba por promover é a marcação H-H e a completa falta de racionalidade espacial. Porque senão vejamos: eu estou a defender e tenho um colega na bola. Se o meu objetivo é recuperar a bola e não tenho baliza para defender a opção mais eficaz é marcar um adversário para que no momento em que ele solicitar a bola eu a intercepte. O jogador não é burro e sem condicionantes que o dirijam para o objetivo correto vai sempre optar pela solução mais eficaz, que neste caso é marcar ao homem. E se o treinador exigir o contrário, que hajam coberturas a quem sai à bola, queima-se porque não tem qualquer lógica defender com contenções\coberturas se não houver um eixo que guie o posicionamento. Perde a razão e perde a confiança do jogador.

E agora? Estou a passar a mensagem que a melhor maneira de defender é H-H e não à Zona. Se esse for o objetivo do treinador então o exercício é bom, as ideias não. Se esse não for o objetivo então a operacionalização está errada. E estamos a falar de um exercício imensamente usado por este país fora, inclusive por treinadores de 1ª Liga.

Treinar a circulação de bola? Sim, quanto mais melhor. Mas com exercícios que respeitem a inteireza do jogo e que não castrem dum lado para beneficiar do outro.

7 comentários:

Blessing disse...

Boa tarde João. Parabéns pelo artigo, gostei muito de te ler.

"Não vou sequer entrar na discussão da utilização da regra dos 2 toques"

Gostaria contudo de saber qual é a tua opinião sobre a regra dos dois toques, e o porquê dessa mesma opinião.

Quanto ao artigo, mantens o que dizes se a forma for: 4x4+joker?

Ou se no objectivo acrescentar: após 10 passes ou 15 segundos com bola a equipa em posse marca um ponto?

Cumps

Unknown disse...

Boa noite João! Como o Baggio, gostei bastante do que li!

Eu aprendi os principos base da defesa zona fazendo exercicios semelhantes ao que criticas. Neste tipo de exercicios, sem referencia, tens contenções e coberturas a surgir de todo o lado e é frequente haver superioridade da defesa na zona da bola, principalmente a 2 toques (no nivel competitivo a que estou habiturado). Se os teus jogadores conseguirem perceber os principios mais básicos num exercicio sem referencias da baliza, eu acho que conseguirão mais facilmente repetir esses comportamentos numa situação em que já tenhas a referencia. O mesmo se aplica à criação de linhas de passe que, no caso da equipa que tem a bola.

Pessoalmente, sou muito fã deste tipo de exercicio, apesar de preferir trabalhar com mais jogadores e um espaço maior, porque obriga a uma maior basculação e "castiga" mais quem falha na defesa

Unknown disse...

Boa noite João! Como o Baggio, gostei bastante do que li!

Eu aprendi os principos base da defesa zona fazendo exercicios semelhantes ao que criticas. Neste tipo de exercicios, sem referencia, tens contenções e coberturas a surgir de todo o lado e é frequente haver superioridade da defesa na zona da bola, principalmente a 2 toques (no nivel competitivo a que estou habiturado). Se os teus jogadores conseguirem perceber os principios mais básicos num exercicio sem referencias da baliza, eu acho que conseguirão mais facilmente repetir esses comportamentos numa situação em que já tenhas a referencia. O mesmo se aplica à criação de linhas de passe que, no caso da equipa que tem a bola.

Pessoalmente, sou muito fã deste tipo de exercicio, apesar de preferir trabalhar com mais jogadores e um espaço maior, porque obriga a uma maior basculação e "castiga" mais quem falha na defesa

martin vazquez disse...

bastante interessante tocares neste ponto. conclui há pouco o curso de nível 2 e uma das mensagens mais passadas lá foi precisamente a necessidade dos exercícios terem uma direccionalidade e um objectivo realista para ambas as equipas. abraco

João Ferreira disse...

Baggio:

"Gostaria contudo de saber qual é a tua opinião sobre a regra dos dois toques, e o porquê dessa mesma opinião."

Não sou apologista da regra dos 2 toques porque retira ao portador a possibilidade de conduzir (neste caso servindo para atrair adversários por exemplo ou apenas para segurar a bola em segurança até chegarem mais apoios). Percebo a intenção, dentro deste tipo de exercícios, mas não concordo com ela. Tudo bem que o objetivo é obrigar os colegas a proporcionarem linhas de passe constantes e o mais rápido possível de forma a que não percam a bola mas, a certo ponto, por muito boa que seja a tua equipa nesse sentido, não vais ter opção de passe o que te obriga a temporizar. Se introduzires a regra dos 2 toques retiras essa variável e se a intenção é aproximar o exercício da realidade do jogo então nunca podes ter um número limitado de toques devido à variabilidade de situações que vão acontecendo. Para aumentar a dificuldade a quem ataca podemos mexer com o espaço, mantendo a liberdade de ação.

"Quanto ao artigo, mantens o que dizes se a forma for: 4x4+joker?"

Depende. Estamos a falar de um joker “estático” dentro do bloco? Se sim concordo com a lógica mas não com a operacionalização. Se estamos a falar de um joker “móvel” percebo onde queres chegar e em equipas de nível elevado pode funcionar, mas pensa assim: qual é o referêncial que usas, sempre, para justificares um bom posicionamento defensivo, além da distância entre sectores\apoios? Baliza-bola. Se retiras uma dessas condições estás a forçar o jogador a estar dentro dum sistema fechado que nunca vai acontecer no jogo. Que beneces retiras de um exercício onde, mesmo que os jogadores aos poucos se apercebam da vantagem de defender zonalmente, apenas tens um ponto de orientação?

"Ou se no objectivo acrescentar: após 10 passes ou 15 segundos com bola a equipa em posse marca um ponto?"

Ao acrescentares esse objetivo não estás a alterar aquilo que eu critiquei no artigo. Pelo contrário, se mantêns a forma (estou a considerar que o exemplo que deste acima é separado deste) mais incentivo estás a dar para quem defende a procurar recuperar a bola o mais rápido possível às custas daquilo que é o bom defender.
Gonçalo:

“Neste tipo de exercicios, sem referencia, tens contenções e coberturas a surgir de todo o lado e é frequente haver superioridade da defesa na zona da bola”

Se pegarmos no exemplo de superioridade numérica do Baggio posso aceitar esse argumento. Mas as coberturas estão orientadas a quê? Tenho um colega à minha frente a fazer contenção\pressão no portador. Eu vou-me colocar em cobertura mas em que direção se não tenho a baliza nas costas para me orientar? Apenas pelos meus colegas? Acabo por, inadvertidamente, me reger pelo posicionamento do adversário, mesmo que de forma minimamente zonal.

"Se os teus jogadores conseguirem perceber os principios mais básicos num exercicio sem referencias da baliza, eu acho que conseguirão mais facilmente repetir esses comportamentos numa situação em que já tenhas a referencia."

Eu acho o contrário. Partindo do pressuposto que queres elevar os princípios defensivos para outro patamar, a intenção será sempre partir de situações de análise mais simples (com referência) e só depois para situações mais complexas (sem referência). Será o mais lógico a fazer, apesar de eu não concordar em particular com a estrutura deste exercício.

Martin:

Obrigado. Este acaba por ser o maior problema quando se cria um exercício. Parece que não mas dá imenso trabalho criar situações (exercícios) onde promovas comportamentos sem afetares a fluidez do jogo. Talvez por isso ainda se vejam por aí muitos exercícios que castram uma parte ou outra. A maior parte das vezes o tempo (e o material) não é muito e acaba por ser mais fácil criar algo mais descontextualizado do que estar debruçado no planeamento de um exercício durante muito tempo. Dá trabalho mas no fim compensa e de que maneira!

martin vazquez disse...

outro aspecto importante é o posicionamento anárquico dos jogadores nesse tipo de exercícios, muitas vezes longe das suas posições e rotinas de jogo

Blessing disse...

Olá João,

Sobre a regra dos dois toques acho que depende do contexto e do exercício. A jogador pode temporizar sem tocar na bola, pode temporizar com um toque e guardar outro para quando a ocasião o permitir. Um exercício curto, sem espaço para conduzir, onde se quer que as acções sejam mais rápidas, e as decisões também, onde se quer que se abram linhas de passe de forma constante, acho que se pode jogar com isso. Há exercício que utilizo como complementares só com o objectivo da agressividade nas linhas de passe, onde limito o número de toques para isso. Não dou é referências de ataque e defesa, precisamente para não prejudicar a tomada de decisão, para não lhes dar a hipótese de poderem conduzir. Eu também não gosto de limitar a dois toques. Mas há exercícios em que isso é bastante útil, no aquecimento, ou mesmo para complementar ou iniciar uma determinada ideia de jogo.
Lembro que no início, quando chego a uma equipa nova tento que tudo seja o menos complexo possível, para que se possa facilitar a aquisição de hábitos. Para que com o tempo se vá aumentando a complexidade dos estímulos.

"Se estamos a falar de um joker “móvel” percebo onde queres chegar e em equipas de nível elevado pode funcionar"

Um joker móvel obviamente.

"Se retiras uma dessas condições estás a forçar o jogador a estar dentro dum sistema fechado que nunca vai acontecer no jogo. Que beneces retiras de um exercício onde, mesmo que os jogadores aos poucos se apercebam da vantagem de defender zonalmente, apenas tens um ponto de orientação?"

Pego novamente no exemplo do início dos comportamentos, da pouca complexidade dos estímulos. Os jogadores, no meu modelo, têm de se colocar em cobertura ao homem em contenção, com o objectivo de fechar linhas de passe à esquerda, à direita, e o apoio frontal. Portanto orienta-se, tal como em jogo, em função disso. Só que neste caso usam apenas a referência da bola, e do colega. Menos complexo, mais fácil de adquirir, muito bom na minha opinião para o início da operacionalização.

"Ao acrescentares esse objetivo não estás a alterar aquilo que eu critiquei no artigo. Pelo contrário, se mantêns a forma (estou a considerar que o exemplo que deste acima é separado deste) mais incentivo estás a dar para quem defende a procurar recuperar a bola o mais rápido possível às custas daquilo que é o bom defender."

Estou a alterar de forma significativa o que criticaste. Porquê? Porque, por exemplo, existindo também a possibilidade de pontuar sem trocar passes, os jogadores não ganham nada em ficar HxH. Ou seja, um deles terá de sair na bola, se os outros tiverem HxH não será vantajoso, porque ele ficará livre para manter a bola o tempo que lhe apetecer. E depois, sai um que estava com outro jogador, e já fica um jogador livre para receber.
No fundo, o que estou a contestar é a universalidade do jogador pensar em função do HxH não tendo referências (ataque/defesa).

Não é que não concorde que em muitos exercícios isso acontece quando não tens essas referências, só acho que não é universal. Os meus exemplos, pretenderam mostrar que com o mesmo exercício, alterando as regras o HxH já deixa de ser uma vantagem. Coisa que na forma como o exercício estava estruturado inicialmente não era.
Então se colocar-mos superioridade de 2 homens, se torna evidente que o HxH deixa de ter qualquer vantagem...

cumprimentos, e reitero que gostei da leitura e do artigo.